quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Reza Deghati: o poder da convicção

Fotógrafo Reza Deghati (Foto: Mark Thiessen/National Geographic)

Marcela Puccia Braz/National Geographic

Em 1974, quando o iraniano Reza Deghati, então com 22 anos, foi preso e torturado pela polícia secreta do antigo regime dos xás em seu país, ele ainda não era o fotógrafo de NATIONAL GEOGRAPHIC hoje mundialmente conhecido. Ainda não havia registrado guerras no Afeganistão, na Bósnia ou em Ruanda, e não havia sido premiado por diversos trabalhos humanitários ao longo de 30 anos de carreira. Era um jovem estudante de arquitetura que espalhava, pelos corredores da Universidade de Teerã, fotos de pobreza e de injustiças sociais. Anos depois da Revolução Iraniana que transformou o país em uma república islâmica, Reza reencontrou seu torturador na prisão.

Apertando as mãos do prisioneiro, que se lembrava dele, mirou-o bem nos olhos e perguntou: “Você ou sua família precisam de alguma coisa?”. “Se eu não fosse a pessoa a dizer aquilo, não teria feito tudo que eu fiz até hoje. Não seria eu", explica.

Como você pôde presenciar tanta dor e continuar registrando as piores facetas do ser humano?
Eu acredito que a natureza humana é boa e que estamos aqui para ajudar a evolução da humanidade. Tudo que eu vejo me impulsiona a fazer ainda mais pelo outro lado. Sou otimista em relação ao futuro.

De onde vem esse otimismo?
Há menos guerras acontecendo no planeta do que há 20 anos. Mais e mais lugares têm se pacificado. Para mim, isso é uma evolução. Nós devemos ser parte disso e exercitar nossa força de seres humanos. Nosso trabalho deve ter sempre esse viés: sem pensar em si próprio, precisamos olhar ao redor e ver como podemos influenciar aquilo que está ao nosso alcance. Eu nunca me acostumei com as injustiças. Ainda hoje, quando eu vejo uma criança chorando, é como se fosse a primeira vez. Dói.

Como você continua com seus projetos se isso ainda te machuca?
Eu leio poesia todos os dias. É a melhor coisa para polir a alma. Na minha língua, leio Rumi, poeta persa do século 13, um dos fundadores do sufismo. Leio Pablo Neruda, um dos meus poetas favoritos. Há vários outros: Rainer Maria Rilke, da Alemanha, ou os japoneses. Na verdade, o que a poesia faz, se você aprende a ler, é abstrair completamente a sua vida cotidiana. Quando você está lendo, está aquele momento que chamamos de meditação, no qual se pode esquecer tudo e renovar a mente.

Você acredita que a fotografia pode mudar as coisas?
Com certeza. Comecei como arquiteto, mas mudei de profissão quando vi o poder da imagem. Mas estou falando de fotografia de verdade. Milhões de pessoas tiram fotos, mas eu faço fotografia. É diferente.

Qual é a diferença?
É a mesma diferença que todo mundo ter uma caneta e poder escrever, mas quantos podem ser Hemingway? As empresas de câmeras querem que a pessoa acredite que, se comprarem determinada câmera profissional pode tornar-se profissional. É como tentar fazer todo mundo acreditar que, se você comprar a mesma caneta que Hemingway tinha, você pode escrever da mesma forma que ele.

Como aprender a verdadeira fotografia?
Você pode ir para a melhor escola de música, aprender sobre notas e teorias, mas não pode ser um Mozart. Pode estudar literatura em uma boa faculdade e não se tornar um poeta. Todo dia, no mundo, um milhão de pincéis são vendidos. Quantos Van Goghs nós temos? Você pode, obviamente, aprender como tirar boas fotos, mas imagens que tocam o coração das pessoas precisam de algo mais. Minhas fotos são simples; não são complicadas ou sofisticadas. Mas são emocionais. Isso não se aprende na escola.

Você tira fotos com o cérebro ou com o coração?
É uma combinação de razão e emoção, o que significa que, antes de tudo, sou um contador de histórias, não um fotógrafo. A fotografia é uma ferramenta para mim. Não sou um artista muito dogmático. É preciso saber qual é a história que se quer contar. E então ir até ela e deixar o coração decidir. A história está no cérebro, mas a decisão está no coração.

Quais foram as situações mais perigosas pelas quais você passou?
Uma vez, no Afeganistão, fiquei cercado de militares russos. Me escondi por 14 dias sem provisões, apenas comendo grama do chão. Percebi o poder da mente. Como em uma situação extrema o cérebro pode te ajudar a sobreviver, a ser forte, a fazer algo que você nunca pensou que pudesse fazer. Mais de 100 vezes eu fechei os olhos e pensei: “Reza, adeus, esse foi seu último momento”. Eu tenho muitos buracos pelo meu corpo. Muitos. Já fui machucado, estive em hospital, prisão, sofri tortura, agressão. Passei três anos na prisão e cinco meses sob tortura. A pior parte da tortura não é a dor física, mas ver que você está lá deitado, amarrado, sendo machucado, e a pessoa está rindo. Ele vê o seu drama e ri. Essa é a pior parte.

Como você sobreviveu à tortura?
Você acredita no que você faz. Acredita que é certo. E assim resiste. Esse é o poder da mente.

Seus torturadores nunca conseguiram te fazer duvidar disso?
Não. Na prisão eles diziam: “Eu vou te quebrar”. Essa era a palavra. Uma coisa que eu fiz para resistir foi um tabuleiro de xadrez. Ficava jogando comigo mesmo, pois eu estava sozinho em uma cela pequena. Essa é a parte de reprogramar seu cérebro. O principal desafio, sob tortura, é não entregar o nome das pessoas, dos seus amigos. É assim que você pode resistir. Jogar xadrez com você mesmo significa esquecer por que o outro lado fez o movimento.

Como você fez o tabuleiro?
Quando você vai ao banheiro, você rouba sabonete. O lençol vira o findo branco, e pedaços do sabonete tornam-se casas. Recebe pão todo dia e você guarda o miolo dele, e, aos poucos, faz as peças e tudo. Com o pão.

Em que momento você decidiu largar a arquitetura e se tornar fotógrafo?
Fotografia foi minha paixão desde os 14 anos. Aos 27, achei idiota trabalhar noite e dia como arquiteto se a minha mente e meu coração estavam na fotografia.

Como foi o início de carreira?
Anos depois da revolução, eu estava na imprensa e fui conhecer prisioneiros que, no regime do xá, estavam no poder. Quando cheguei, vi que um deles era o homem que me torturou. Então eu chegue, apertei a mão dele e o chamei pelo apelido de torturador. “Oi, eu sou Reza Deghati.” Ele se surpreende e diz: “Eu me lembro de você”. E sabe o que eu disse pra ele? “Você precisa de alguma coisa? Sua família precisa de algo?”. Ele começou a chorar e saiu correndo.

O que você aprendeu com as situações de vida ou morte durante a carreira?
Certa vez, em Sarajevo, por exemplo, um dos oficiais sérvios apontou a arma pra mim e disse: “Esse vai ser seu último momento. Eu vou te matar”. E aí eu comecei a rir. Eu sabia que se começasse a implorar, ele me mataria. A guerra estava acontecendo há anos entre os sérvios e o povo de Sarajevo. Eles estavam cercados e os sérvios matavam qualquer um que se mexia.

E por que não te mataram?
Porque eu fui capaz, psicologicamente, de vencê-lo. Comigo rindo, ele ficou desorientado e me perguntou: “Por que você ri?”. E eu respondi “Você não é quem decide qual será meu último momento”.

Foi um truque ou você realmente acreditava nisso?
Não, não, não [risos]... Na verdade foi a única coisa que me veio à mente, pois eu precisava continuar conversando. Ele ficava me pedindo para ficar de joelhos e implorar para que não me matasse. Foi então que eu percebi que ele havia se tornado um psicopata que matava pessoas daquele modo humilhante. Eu prolonguei a conversa até que jornalistas que estavam em um carro próximo, atônitos com a cena, vieram em nossa direção. Consegui desencorajá-lo e deixá-lo desorientado. Então, ele finalmente recolheu a arma, devolveu meu passaporte e disse “Vá!”. Eu pulei dentro do carro com os outros e parti.

A técnica é apelar para a humanidade nas pessoas?
Acredite em você. Todas as grandes revoluções e mudanças sempre começam com uma pessoa. Uma pessoa pode mudar as coisas. Acredite no seu poder de mudança. Sempre digo que tenho certeza que há uma bala com meu nome escrito nela. Mas ela tem me seguido por 30 anos e toda vez eu desvio dela. Um dia ela vai me pegar.

Você não tem medo?
Não, porque você só morre uma vez. Não morremos duas vezes. Dizemos que o medo é o irmão da morte. Isso significa que, se você tiver medo, você vai morrer. Se você perder sua habilidade, se você entrar em pânico, você vai morrer.

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