Sebastião Salgado construiu sua carreira como um dos mais aclamados fotógrafos da história registrando o homem, as questões sociais, a industrialização, a economia, a imigração, a vida e a morte das guerras. Um desses projetos, Êxodos, lançado em 2000, é o best-seller que encarna seu fascínio pelo humano ordinário em fuga – o trânsito dos refugiados. Ao término desse projeto, que marcou sua biografia, o fotógrafo brasileiro radicado em Paris estava morrendo.
Como as populações que viu agonizarem em Ruanda, como os milhares de cadáveres que viu serem empilhados por retroescavadeiras, seu corpo também se deteriorava. Mergulhado na depressão e na descrença profunda na humanidade, Salgado decidiu parar de fotografar.
Para curar sua alma, refugiou-se no Brasil. Lá, junto do pai e da mulher, a designer Lélia Wanick Salgado, descobriu que a degradação não era apenas do ser humano, mas também do ambiente. O paraíso no qual tinha passado a infância estava sendo arrasado. Diante do desafio de reconstruir o ecossistema que trazia na memória, lançou-se a um projeto de reflorestamento e preservação ambiental.
O contato com a terra, então, lhe devolveu o contato com a Terra. E daí nasceu Genesis, um projeto fotográfico ambicioso e milionário (de € 8 milhões), dividido em oito anos e em 32 reportagens, verdadeiras expedições a ecossistemas, paisagens e povos intocados pelo progresso.
Lançada em Londres em 9 de abril, a primeira edição de Genesis, de 50 mil exemplares escritos em seis línguas, esgotou-se em 20 dias. Outra edição já foi encomendada e vai ficar pronta até o final deste mês. A previsão de seu editor, a alemã Taschen, é de que entre 500 mil e um milhão de livros sejam vendidos – de duas vezes e meia a oito vezes mais do que Êxodos. A exposição fotográfica chega a São Paulo em 11 de setembro.
Muito além do sucesso comercial, entretanto, Genesis significa para Salgado uma espécie de renascimento. Em suas reportagens, o fotógrafo que antes imortalizava homem e agora registra habitats reencontrou a esperança. Em lugar da depressão que o abalou ao fim de Êxodos, Genesis lhe traz entusiasmo, fascinação e otimismo. Salgado descobriu que a Terra, por mais abalada que esteja pela intervenção do homem, ainda vive. A seguir, a síntese da entrevista concedida ao Estado em seu ateliê um dia após a sessão de autógrafos realizada de Paris na sexta-feira (17/5).
Você construiu sua carreira registrando o homem e suas questões econômicas, políticas e sociais. Ao que consta, ao fim de Êxodos você estava abalado, perdendo a fé na humanidade e decidiu parar de fotografar. É isso?
Sebastião Salgado – Sim, eu parei de fotografar um momento. Quando estava fazendo Êxodos, sofri uma carga psicológica brutal. Em Ruanda, principalmente, vi coisas terríveis. A força de se trabalhar em um universo difícil, violento, é enorme. Eu presenciei 15, 20 mil mortos por dia, a tal ponto de não se poder enterrar as pessoas. Os corpos se acumulavam em montes, em linhas de 100 metros de mortos. Aí vinha a máquina e levantava 30, 40 corpos e os jogava em um buraco. Era uma coisa brutal. Vi populações em total desespero. Quando terminei esse trabalho, meu corpo inteiro estava doente. Eu não conseguia mais dormir, não fazia mais a digestão. Fui ver o médico e fiz exames. Ele me disse: “Você não tem nada, mas está morrendo”. Eu tinha vivido um universo de degradação tão profundo que meu corpo não se dava mais o direito de viver.
Com foi a redescoberta?
S.S. – Lélia e eu paramos e fomos para Porto Seguro. Coincidentemente, foi o momento em que meus pais estavam ficando velhinhos, e nos passaram uma fazenda em Minas Gerais. Pensamos até em ser fazendeiros, abandonar a fotografia. Mas, quando vi aquela terra, ela não era mais o paraíso com 50% de cobertura de florestas de quando eu era criança, mas só com 0,3% de cobertura florestal. Na minha região inteira, tudo estava destruído. Eu estava meio morto, e aquela terra estava meio morta, apesar de sua qualidade maravilhosa. A Lélia então teve uma ideia maravilhosa. Ela me disse: “Você sempre me disse que cresceu em um paraíso. Por que não replantamos a floresta nativa que havia aqui?”. Foi construindo esse projeto que veio a ideia de fotografar o planeta. Eu nunca tinha fotografado paisagens, nem outros animais. Foi fantástico.
Mas para isso você teve de sair da zona de conforto e se lançar no desconhecido.
S.S. – Sim, mas o conforto é relativo. Eu trabalhei dentro do projeto Genesis com grupos que ainda vivem como há 3 mil, 10 mil, 50 mil anos. E posso dizer que eles vivem de uma forma hiper confortável. Não têm a sofisticação de consumo de produtos que nós temos, mas eles têm um conceito que nós perdemos: o essencial. Eles vivem de uma maneira fantástica, com o mesmo sentido de comunidade e de solidariedade que nós temos.
E você teve de viver assim também durante o projeto.
S.S. – Fazendo esse projeto, voltei a viver como vivíamos há cinco mil anos, em uma barraca, caminhando… Fiz caminhadas incríveis, como no norte da Etiópia, por exemplo. Foram 55 dias caminhando, fazendo 850 quilômetros a pé, pelas montanhas, porque não tem estrada. A Lélia veio a 350 quilômetros do fim e fomos embora. Qualquer um pode fazer. Não é um desconforto. É maravilhoso.
Você disse em uma de suas entrevistas que se reencontrou como animal.
S.S. – Sim, sou um animal e me reencontrei com minha espécie. Lembro de quando fotografei uma iguana em Galápagos e me dei conta de que ela era uma miniatura de um dinossauro. Estava ali em frente à mim. Quando fotografei aquela pata, foquei minha teleobjetiva macro e me senti como se estivesse fotografando a mão de um guerreiro da Idade Média, com aquelas escamas de metal protegendo-o para a luta. Todos os movimentos musculares, as veias, os cinco dedos, tudo estava ali representado. Se aceitamos a Teoria da Evolução de Darwin, sabemos que viemos todos da mesma célula de base e evoluímos em trajetórias diferentes, em função dos ecossistemas em que vivemos. Na verdade, entendi que o que nos contaram a vida inteira, que éramos a única espécie racional, é uma enorme pretensão da nossa espécie. Todas são racionais. Mas é preciso entrar na sua lógica para compreender a racionalidade de cada espécie.
Genesis lhe fez filosofar sobre a vida também?
S.S. – Filosofar, não. Mas me fez voltar à essência e sair com muita paz desse projeto.
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Andrei Netto é correspondente do Estado de S.Paulo em Paris
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