"Neste anno de 1832, no dia 15 de agosto, estando a passear na minha varanda, vem-me a ideia que talvez se possa fixar as imagens da camera escura, por meio de um corpo que mude de cor pela acção da luz."
É assim que o francês Hercule Florence recorda, anos depois, do que teria sido a fagulha para o nascimento da fotografia no Brasil há exatos 180 anos - em uma data bem anterior à invenção do daguerreótipo de Louis Daguerre, na França em 1839, referência mais comum ao 'nascimento' da fotografia.
O feito em terras brasileiras passou a ser mencionado em novas publicações sobre a história da fotografia em todo o mundo ao longo das últimas décadas, mas mesmo assim ainda permanece desconhecido para a maioria dos brasileiros.
Datas divergentes
É preciso esclarecer inicialmente que, para Kossoy, a descoberta da fotografia no Brasil vai completar 180 anos de fato dentro de alguns meses, em 20 de janeiro de 2013. Isso porque são deste dia as anotações em um diário de Florence que narram seus primeiros experimentos bem-sucedidos de uma fotografia.
Apesar de o inventor ter posteriormente citado o dia de 15 de agosto de 1832 mais de uma vez, a pesquisa não verificou nenhuma prova escrita datada desse ano em seus diários. "Ele fez essas anotações mencionando a data de 1832 muitos anos depois, após a divulgação no Brasil da descoberta do Daguerre", lembra Boris Kossoy.
Não deixa de ser curioso, no entanto, o fato de o inventor se referir a uma data tão específica.
Fotografia como 'xerox'
Florence via a fotografia como sequência natural a suas pesquisas na poligrafia, uma forma de reproduzir documentos e desenhos de forma fiel. Ele buscava uma maneira mais prática de fazer isso e oferecer como serviço de cópias na vila de São Carlos, já que ali não existia qualquer oficina de tipografia na época.
No entanto, apesar de seguir por outro caminho, ele chegou a vislumbrar a aplicação mais popular da fotografia depois de conseguir a imagem negativa de sua janela usando uma máquina fotográfica arcaica feita com a lente de um binóculo. "Mas como será útil para os retratos! Isso mesmo: a imagem de uma pessoa, refletida na câmara escura, será apreendida e fixada no papel por uma simples ação química. Quanta semelhança!", escreveu, também em 1833.
Poesia
Em um de seus experimentos de janeiro de 1833, Florence escreve em uma superfície de vidro preparada com nitrato de prata uma frase carregada de poesia, que atribui certo tom fantástico aos seus resultados. Em francês, ele escreve "E tu, Divino sol, empresta-me teus raios". Exposta à luz, a frase é reproduzida com perfeição, como se o Sol houvesse acenado consentindo ao pedido de Florence.
Xixi como fixador
Confrontado pela dificuldade de manter as imagens no papel sem que as partes claras passassem a escurecer com o tempo, o francês passou a testar substâncias que pudessem dissolver os sais de prata após a exposição à luz. E uma dessas substâncias, usada segundo suas anotações "um pouco ao acaso", foi a urina.
Ele verificou que banhar uma imagem fotografada em urina por alguns minutos permite que ela volte a ser exposta ao sol posteriormente sem escurecer, de forma bem mais eficaz que um simples banho de água.
Tratados de química de muitos anos antes já afirmavam que a amônia, presente na urina, era capaz de dissolver o nitrato de prata. Mesmo assim, segundo Kossoy, foi Florence o primeiro dos precursores da fotografia a empregar a amônia (o xixi) como substância fixadora.
Uma fotografia na França, antes de Daguerre
Uma curiosidade que o livro sobre Florence levanta é que uma foto feita por ele teria sido levada pelo príncipe de Joinville (François Ferdinand Philippe Loius-Marie d'Orléans) de volta à França no começo de 1838, antes da divulgação dos estudos de Daguerre ao grande público.
"Curiosa ironia: um ano e meio antes da anunciada descoberta de Daguerre pela Academia de Ciências de Paris (19 de agosto de 1839), o príncipe de Joinville, filho do rei da França, levava em sua bagagem uma cópia d[o desenho d]e um índio Bororo obtida por processo fotográfico!", diz Kossoy em um trecho do livro.
"Essa é uma das coincidências da história do Florence que deixa as pessoas mais intrigadas", aponta o autor ao G1. Não se pode dizer, no entanto, que esse fato tenha qualquer ligação com as descobertas de Daguerre.
Humildade e desabafo
Apesar de ter pleno direito de reivindicar a descoberta da fotografia a si, como hoje é comprovado, Hercule Florence em mais de um momento fala com humildade a respeito das notícias do invento de Daguerre, abrindo mão de buscar qualquer glória e assumindo a possibilidade de duas pessoas terem a mesma ideia de forma espontânea.
"Como eu tratei pouco da photographia por precisar de meios mais complicados, e de sufficientes conhecimentos chimicos, não disputarei descobertas a ninguém, porque uma mesma idea pode vir a duas pessoas, porque sempre achei precariedade nos factos que alcançava, e a cada um o que lhe é devido", escreveu em artigo publicado no jornal "A Phenix" de São Paulo em 1839.
Mesmo assim, um "desabafo" retirado de um dos manuscritos de Florence mostra que ele tinha consciência plena de suas limitações geográficas e se sentia "um inventor no exílio".
"Em um século em que se recompensa o talento, a Providência me trouxe a um país onde isso não importa. Sofro os horrores da miséria, e minha cabeça está plena de descobertas. Nenhuma alma me escuta, nem me compreenderia. Aqui só se dá valor ao ouro, só se ocupam de política, comércio, açúcar, café e carne humana. Sem dúvida conheço algumas almas grandes e belas, mas essas, em número muito reduzido, não têm formação na minha linguagem, e eu respeito sua ignorância", afirma.
É de se refletir, entretanto, se Hercule Florence teria se dedicado aos mesmos interesses caso estivesse na Europa, e não no interior do Brasil, onde a inexistência da tipografia acabou o empurrando na direção da fotografia.
Imagem:Divulgação |
Hercule Florence - A descoberta isolada da fotografia no Brasil (3ª edição)
Autor: Boris Kossoy
Editora: Edusp
412 páginas
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