Durante um banquete realizado no Museu de Arte Moderna, em
Nova York, Lucienne Bloch (1909-1999) conheceu uma das pessoas que mudaria sua
vida para sempre: o artista muralista mexicano Diego Rivera (1886-1957).
Lucienne foi convidada a sentar ao lado de Diego não só porque ambos eram
artistas, mas também porque falavam francês fluentemente. Conversaram durante
horas. Diego estava produzindo sete afrescos para a nova exposição que o Museu
estava preparando. Com ele, Lucienne se deu conta que todo seu conhecimento
sobre afrescos, tradição artística utilizada durante os séculos XIV e XV por
seus renascentistas favoritos, Michelangelo e Da Vinci, estava errado. Queria
fazer afrescos, aprender, produzir. Ficava extasiada com novas aventuras
artísticas. Perguntou a Diego se poderia preparar os pigmentos que seriam
utilizados nestes trabalhos. Para sua surpresa, Diego aceitou e marcou trabalho
logo para o próximo dia, as 8 horas da manhã.
Durante esta mesma noite no Museu, Lucienne foi cumprimentar
a esposa de Diego, uma mulher jovem, intrigante, de beleza exótica, com grandes
e penetrantes olhos castanhos, vestida com uma colorida e tradicional roupa
mexicana. Quando Lucienne a cumprimentou entusiasmada, Frida Kahlo respondeu:
eu te odeio. Ela estava reparando nos dois durante toda a noite. Lucienne, em
vez de se assustar com a reação de Frida, ficou por ela mais fascinada do que
nunca. Ouvir de Frida palavras tão reais e sinceras era revigorante. Por
incrível que pareça, tornaram-se grandes amigas, construíram uma amizade
íntegra com base na honestidade e confiança. Frida percebeu que Lucienne estava
apaixonada pelo trabalho de Diego Rivera, e não pelo pintor.
Frida em Nova Iorque,1933(Fotos:Lucienne Bloch |
Prelúdio
Ernest Bloch (1880-1959), pai de Lucienne, era músico,
compositor e fotógrafo. Moravam em Genebra, na Suíça, cidade onde Lucienne
nasceu. Muito influenciada por ele, que, em casa, incentivava discussões sobre
problemas sociais como racismo, probreza e lutas de classes, por vezes o
acompanhava nas reuniões com amigos ecléticos, onde comiam, bebiam e
conversavam sobre assuntos contemporâneos que discorriam entre música,
literatura e arte em geral.
Apesar de todo o incentivo de Ernest, quando criança
Lucienne não gostava de estudar música, mas devorava livros de arte. Tamanho
interesse resultou em um projeto artístico, quando decidiu escrever e ilustrar
seu próprio livro, O coelho mágico,
elaborado aos 11 anos de idade. Chegou até a enviar o piloto para uma
editora, mas recusaram a publicação. Nesta época, Lucienne e sua família
moravam nos Estados Unidos – saíram da Suíça por causa das tensões geradas pela
guerra e pelo antissemitismo que inquietavam a Europa. Seu primeiro trabalho
artístico, mal sabia, seria publicado apenas quatro anos mais tarde, aos 15,
quando ilustraria as 10 peças de piano que seu pai compôs para crianças, no
mesmo ano em que seria admitida no Instituto de Artes de Cleveland.
Começou a fotografar também por influencia de Ernst, como já
era de se imaginar. Com 5 anos de idade, ainda na Suiça, ajudava seu pai a
expor ao sol negativos sobre papéis fotográficos. Aos 12, ganhou dele sua
primeira câmera fotográfica, uma Brownie.
Seguindo as ordens de Ernest, que desejava ver as filhas
explorando novas possibilidades enquanto ainda estavam solteiras, foi para
Paris com sua mãe e com suas irmãs, em 1925, quando tinha 16 anos. Lá se
ocupou, estudou escultura e pintura, participou de vários projetos e criou um
círculo de amigos parecido com o que frequentava as reuniões de Ernest. Ainda
em Paris, durante uma das visitas de seu pai, ganhou dele uma Leica 35 mm.
Ficou tão deslumbrada que registrou em seu diário: se as mulheres sentem tanta
emoção com um colar de pérolas quanto eu sinto segurando esta câmera, eu entendo
suas loucuras.
Lucienne na infância/adolescência(Fotos:Autores Desconhecidos/Todos os Direitos Reservados) |
Em 1928 seus pais foram convidados a voltar para a Suíça,
onde Lucienne os acompanhou por cerca de um ano. Em companhia de Ernest
explorava montanhas, fazia caminhadas, colhia cogumelos, desenhava, pintava com
aquarela e, claro, fotografava.
Quando foi para a Holanda, em 1929, também por intermédio de
Ernest, ocupou-se com arte e transcendia a essência de seus arredores nas mais
variadas formas, experimentava todas as técnicas que podia. Enquanto trabalhava
em uma fábrica de vidros holandesa, foi pioneira no desenvolvimento de um
projeto que estudava o design em esculturas com vidro. Em 1931, foi para Nova
York, onde fez uma exposição individual com as esculturas de vidro. Nova York
foi uma cidade muito fotografada por ela, dava a cenas banais um sentido de
ser, registrava a natureza humana filtrada por seu olhar estrangeiro.
Relação com Frida Kahlo
Lucienne acompanhou Frida e Diego durante a estadia do casal
em Detroit, Michigan, nos Estados Unidos. Frida estava confortável na posição
de esposa e dona de casa, mas odiava o país e não estava mais produzindo. Diego
pediu a Lucienne que ajudasse Frida a achar novas inspirações para criar
novamente. As duas montaram um estúdio no apartamento que se assemelhava a uma
escola de artes. Frida dizia que precisava deste ambiente para conseguir
inspiração. Além de criarem juntas, Lucienne ensinava inglês para Frida, Frida
ensinava espanhol para Lucienne, estudavam culinária e, o mais importante,
sentiam-se realizadas.
Frida em Nova Iorque 1935/1933 no Hotel Plaza Barbizaon(Fotos:Lucienne Bloch) |
Apesar do envolvimento com Frida, Lucienne não deixou de
ajudar Diego Rivera com os murais, afinal foi para Detroit justamente para dar
continuidade ao trabalho de assistente. Trabalhavam no Instituto de Arte de
Detroit. Lucienne aprendeu todo o processo de produção de um afresco, ouviu todas
as lições atentamente e estava ansiosa para experimentar todas as técnicas em
produções autorais.
Pouco tempo depois, Frida descobriu que estava grávida.
Apesar de toda sua felicidade, assuntos tristes e sérios deveriam ser
discutidos. O médico recomendou que Frida abortasse, pois sua saúde estava em
risco. Frida não deu ouvidos e decidiu manter a gravidez, cuidar de si mesma e
fazer tudo que fosse possível para ter esse filho. Certa noite, Lucienne foi
acordada pelo choro e pelos piores gritos de desespero que vinham do quarto de
Frida Kahlo. Foi até lá e a encontrou em meio a uma piscina de sangue, com o
cabelo ensopado e lágrimas molhando toda sua face. Berrava de agonia. Rivera
pediu para Lucianne chamar o doutor, a ambulância chegou e levou Frida ao
hospital, onde ela dolorosamente perdeu seu bebe.
Lucienne ajudou Frida a se recuperar de um dos piores anos
de sua vida. Ela incentivou Frida a pintar novamente. Frida pintava pequenas
telas que Lucienne considerava extraordinárias, dizia que suas telas eram tão
grandiosas em suas dimensões como eram os murais pintados por Diego Rivera. As
duas foram encorajadas por ele a trabalhar com litografia. Estudaram juntas um
guia de arte, tentavam, erravam, tentavam novamente, acertavam, aprimoravam a
técnica até que, enfim, aprenderam a litografar. Enquanto o primeiro trabalho
de Luciene trazia um playground de Detroit com crianças brincando, o de Frida
era um autorretrato em prantos, rodeada por sangue, com seu feto e suas células
divididas, cujo cenário era o Hospital Henry Ford. Enquanto Lucienne explorava
a técnica e produzia várias imagens, Frida só fez uma, se descobriu impaciente
para litografar.
Quando um dia Frida recebeu um telegrama do México
informando que sua mãe estava muito doente, Diego pediu para Lucienne
acompanhá-la nesta viagem, disse que pagaria tudo. Lucienne novamente se
empolgou com a aventura que estava por vir. Registrou toda viagem com sua
Brownie, pois a Leica estava em Nova York sendo consertada. Mesmo passando
muito tempo sozinha, ela desfrutou a nova experiencia de todas as maneiras
possíveis. A nova cultura, as pessoas e
os lugares mexiam com seus sentidos, descobriu um novo mundo, totalmente
diferente dos que já conhecia, se encantou pela música, abraçou a nova vida.
Achava linda a casa azul onde viviam os pais de Frida, cor que contrastava com
os ornamentos pintados em cor-de-rosa. Discutia profundamente sobre fotografia
com Guillermo Kahlo (1872-1941), que também era fotógrafo. Foi na casa azul
(onde é hoje o Museu Frida Kahlo), enquanto jogavam xadrez, que receberam a
triste notícia do falecimento de Matilde Calderón (1876-1932), mãe de Frida e
esposa de Guillermo Kahlo, morta após enfrentar horas de cirurgia.
Após a morte de Matilde, voltaram para Detroit. Entre Frida
e Lucienne havia um entendimento oculto, silencioso, subliminar. Se
compreendiam. Eram amigas e artistas, independentes e fortes, nunca conformadas
com os padrões impostos pelo tempo em que viveram. O tempo que passou com ela e
com Diego Rivera foi crucial para o desenvolvimento do senso artístico
particular de Lucienne. Aprendeu que deveria pesquisar a fundo todos os
assuntos que pretendia abordar em suas obras. Percebeu que o casal era ousado,
transformavam as dificuldades e os conflitos da vida em vantagens, percebeu
também que podia ir contra os padrões da sociedade, como acreditava no passado,
e que essa era o caminho para se tornar uma verdadeira artista.
Rivera pintando/Frida pousando. Nova Iorque-1933(Fotos:Lucienne Bloch) |
Já nos Estados Unidos, Lucienne decidiu viajar para
Wisconsin, contrariando a opinião de Diego. Dizia que precisava alimentar seu
espírito de aventureira e queria conferir o que estava acontecendo por lá, onde
ficava a escola de artes de Frank Lloyd Wright, Taliesin. Descobriu que não era
exatamente como esperava. Na verdade a escola ainda estava sendo criada. Os
artistas iniciantes trabalhavam na fundação e mal tinham tempo para desenvolver
seus próprios trabalhos artísticos. Apesar conseguir prever uma vida idílica
para uma jovem artista, ali, em Taliesin, ela queria ir além, queria fazer
mais, viajar, queria viver sozinha, viver apenas com sua arte, encontrando seus
próprios meios de subsistência.
Novos rumos
No início de 1933, voltou a Nova York, onde estudou arte,
aprimorou sua habilidades em fotografia, litografia, escultura, xilogravura e
aquarela. Apesar de tudo, queria ainda encontrar um amor, alguém como sempre
sonhou, com o espírito explorador como o dela. Os dois homens com quem namorou
não cumpriram com suas expectativas. Casaria-se 2 anos depois, em 1935, com
Stephen Pope Dimitroff, conhecido por Dimi, que era assistente de Diego Rivera.
Dimi nasceu na Bulgária e mudou-se para os Estados Unidos
com 10 anos de idade. Era artista, músico e poeta. Ele e Lucienne tornaram-se
professores e influenciaram muitos estudantes universitários. Ensinavam a
técnica do afresco e acabaram contribuindo, consequentemente, para a
preservação desta arte. Vale frisar que praticamente tudo o que sabiam sobre a
pintura de murais haviam aprendido com ninguém menos que o grande mestre
muralista Diego Rivera. Suas aulas eram tão bem ministradas e exerciam a
profissão com tamanha dedicação que a relação com os alunos era quase familiar.
Com o nascimento de seu primeiro filho, em 1938, o casal se
mudou para Flint, cidade natal de Dimi, em Michigan, nos Estados Unidos, onde
ela ministrava aulas de artes no Instituto de Artes da cidade. Era também
colunista no jornal local e nunca deixou de produzir suas obras autorais. Viveram
em Flint por 8 anos, tiveram mais dois filhos e decidiram que novamente havia
chegado a hora de partir. Venderam a casa com tudo dentro, lotaram o carro e
partiram rumo ao oeste. Chegaram na Califórnia. Lá ficaram por 15 anos enquanto
seus filhos frequentavam a escola. Lucienne continuava lecionando artes e
produzindo. No início da década de 60, mudaram-se novamente, desta vez para um
pequeno município litorâneo, ao sul de onde estavam, chamado Mendocino. Este
foi o último lugar que habitaram. Stephen Dimitroff faleceu em casa, no ano de
1996, dois anos e meio antes da morte de Lucienne. Ela faleceu com 90 anos, no
mesmo quarto onde Dimi partiu.
Lucienne com seus três filhos/Lucienne na velhice(Fotos:Autores Desconhecidos/Todos os Direitos Reservados) |
A arte, metamorfose que é, nunca parou de mudar e de se
reinventar enquanto Lucienne estava ativa, mas ela esteve sempre apoiada em
seus próprios valores. Não se importava com as tendências, com o que estava em
voga. Para ela, o importante era não seguir os passos de ninguém, mas trilhar
seu próprio caminho. Foi várias vezes premiada pelos diversos tipos de arte que
criava e publicou muitos artigos. A relação que manteve com Diego Rivera e com
Frida Kahlo despertou a curiosidade de muitos estudiosos e artistas, que
requisitavam um minuto de seu tempo para ouvir seus relatos, sustentados e
ilustrados pelas fotografias que colecionou durante toda sua vida.
Frida e Diego no parque Belle Isle.EUA 1932/Frida e Diego aos beijos 1933(Fotos:Lucianne Bloch) |
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